27 setembro, 2007





Eles caminhavam de mãos dadas junto ao rio. Os passos eram lentos e arrastados, os sapatos pretos, bem engraxados, e as sandálias de couro castanho colavam-se ao chão, como estivessem a exigir ficar mais tempo naquele lugar. O silêncio era apenas interrompido pela brisa quente que soprava de sul e pelo barulho dos saltos dos sapatos dela, cada vez que tocavam na calçada. Sabiam que o amor que tinha estado tanto tempo trancado no baú estava prestes a saltar-lhes pelos poros. Naquela tarde quente de Julho fizeram exactamente o mesmo percurso que Alice tinha feito quando conheceu Manuel. Encontraram-se numa esplanada da Baixa. Ela tinha ido comprar tecidos com a irmã. Ele lia uma revista de viagens e fumava tabaco de enrolar. Os olhares deles cruzaram-se e prenderam-se um ao outro. Ele, que sempre foi mais espontâneo, convidou-a para lanchar. A irmã afastou-se com a desculpa de que ia à farmácia e deixou-a ali sozinha com ele. Ele falou-lhe de viagens, de gastronomia, de vinhos, do seu Alentejo. Ela contou-lhe que era costureira. Falou-lhe das sedas, dos algodões, dos cetins e das fazendas. Comeram pastéis de nata e saborearam um café com um travo a canela. Contaram histórias, partilharam experiências, riram-se e encontraram-se. Foi naquela tarde que a vida deles se cruzou. Tinham vinte anos e muitos sonhos pela frente. Ela acreditou que era amor à primeira vista e ele deixou-se levar pela alegria e doçura que ela lhe dava todos os dias. Casaram-se e durante dois anos viveram um para o outro, um pelo outro, os dois num só. A paixão desabrochava como uma frésia na Primavera. Era doce, perfumada, fresca e ao mesmo tempo delicada. Ele tornou-se um grande repórter e ela ficava cada vez mais tempo sozinha, em casa, na companhia das plantas que ia comprando. Ele escrevia cartas e ela guardava-as num baú. Chorava cada vez que lia as palavras dele e pedia a Deus que o trouxesse o mais depressa possível. Ela cozinhava, lavava a roupa, costurava, limpava a casa sempre na esperança que ele voltasse naquele mesmo dia. Passou um ano e ele não apareceu. Passou-se outro e mais outro e as saudades iam ficando acumuladas no baú, misturadas com as cartas. Meses depois ele deixou de escrever e ela pensou no pior. Ia à Igreja todos os dias, acendia velas, punha a mesa para dois, cozinhava os pratos preferidos dele para o jantar e fazia-lhe fatos de linho e de fazenda. Dez anos de esperança, trinta anos de amor. Quarenta décadas depois ele voltou com uma família nova, já era pai de dois filhos, e tinha ficado viúvo há uns meses. Arrependeu-se de ter abandonado Alice, a mulher que contava os dias para o reencontrar, que prometeu por várias vezes ir a Fátima se o seu Manuel voltasse. Uma mulher que passou três décadas, sozinha em casa, na companhia das plantas, à espera do homem que ainda a fazia suspirar cada vez que pensava nele. Alice tinha-se despedido dos últimos trinta anos da sua vida vazia, sufocada por quatro paredes, e decidira ir para um lar, no Chiado, onde podia espreitar a vida da Baixa através de uma janela.
Foi daquela janela que avistou Manuel, que subia a rua do Alecrim com algum esforço, abrigado pela sombra. O coração dela disparou. Não, não era uma taquicardia daquelas a que ela já estava acostumada e para as quais o médico lhe tinha receitado medicamentos. Era amor, eram saudades, era a vontade de abraçar Manuel, que fizera com que o coração disparasse. Alice desceu as escadas o mais depressa que pôde, agarrada ao corrimão. Antes de sair olhou-se ao espelho e reparou que não tinha pintado o cabelo e percebeu que na sua pele tinham brotado mais rugas, que lhe vincavam o olhar. Abriu a porta e seguiu o perfume dele. Ainda era o mesmo, um perfume fresco, uma mistura de damasco e menta. Alice chamou Manuel. Ele olhou de imediato para trás. Os olhares cruzaram-se quarenta décadas depois de se terem enfrentado pela última vez. Não era o Manuel, o seu grande amor, era Jerónimo, um ex-coronel que vivia há uns meses na Rua da Prata. Nunca se tinham cruzado. Ele, que sempre desconfiou das partidas do destino ou de milagres, acabou por agradecer a quem colocou Alice no seu caminho. Aquele seria o primeiro dia de uma velhice passada a dois, no meio de quarto paredes, com uma janela sobre o Chiado. A velhice devolveu-lhes a vida, o amor, e preencheu a solidão a que ambos pareciam estar destinados.

Sem comentários: