Ela morreu carbonizada, dentro do carro, abraçada aos filhos. Esta frase não parou de ecoar na minha cabeça enquanto estava a fazer o esparregado para o jantar. Enquanto os espinafres se misturavam no azeite a ferver eu acabava de ouvir uma notícia que me embrulhou o estômago e que me deixou a cabeça atingir as cinco mil rotações. Até agora.
Não sei quem era a mulher mas imagino-a loura, com o cabelo apanhado por um gancho e com a pele branca, mas dourada pelo quente sol de Verão. Imagino-a a vestir os filhos à pressa, a guardar na mala um pacote de bolachas e uma garrafa de água e a puxá-los para dentro do carro. Tossia com a nuvem de fumo negro que continua a assolar o país e suava em bica enquanto sentava os filhos no banco de trás do carro cinza metalizado. Os vizinhos gritavam para não ir, os bombeiros estariam prestes a salvar-lhes a casa e as vidas. Mas ela não os ouviu, ignorou-os e disse que o fogo lhe podia levar a casa, os móveis, os electrodomésticos e todo o dinheiro mas que não lhe havia de roubar os filhos. Acenou um adeus à pressa e sentou-se ao volante. Os olhos choravam, vermelhos, brilhantes. Perto da retina ainda se avistava uma sombra de esperança. O céu era uma mistura de cinza escuro com laranja forte. As chamas e o fogo fundiam-se num só, com uma força de Adamastor, devorava pinhais, estradas, carris e tudo o que apanhava pela frente, a uma velocidade impressionante.
Ela ligou o motor do opel corsa e os filhos começaram a chorar. Eles olharam para trás e viram os vizinhos a dizer-lhes adeus, a chorar. As mais velhas olharam para o céu e rezaram ao ver o carro a afastar-se. Ela viu a casa, pela última vez, através do espelho retrovisor do corsa. A imagem já estava desfocada, o espelho perdera o brilho desde que o incêndio começara. As paredes estavam manchadas e o jardim coberto por uma camada fina de cinzas. Ela conduziu devagar pelas estradas apagadas e ligou a rádio. Ouvia-se a informação de que várias famílias estavam a abandonar as suas casas e as suas propriedades. O trânsito acumulava-se lentamente, numa luta cruel pela sobrevivência. As crianças choravam, gritavam e ela resolveu mudar a estação da rádio. O barulho dos aviões, das chamas, das sirenes dos bombeiros, das buzinas dos automóveis, contrastava com a serenidade e a doçura da voz de Corinne Bailey Ray a cantar “Like a Star”. O choro dos filhos começou a diminuir de tom. Ela olhou-os através do espelho retrovisor e sorriu. Disse-lhes que ia correr tudo bem. No sentido contrário da estrada vinha um carro a toda a velocidade e o homem que o conduzia esbracejava, gritava para que ela voltasse para trás. A estrada estava a ficar cercada pela fogo. Ela olhou em redor e viu as chamas a aproximarem-se, a devorarem o pinhal e as casas à volta a um ritmo alucinante. O homem acelerou o carro e desapareceu no meio do fumo. Ela olhou para os filhos e eles sorriram. Estavam calmos. Ela olhou mais uma vez em redor e viu o fumo a cercar o carro. A temperatura começou a aumentar muito depressa. O suor misturou-se com as lágrimas que lhe caiam do rosto. Desligou o motor do carro e aumentou o volume da rádio. Tirou o cinto e saltou para o banco de trás, para estar mais perto dos filhos. Sabia que ia morrer. Sabia que eles iam morrer. Tirou da mala o pacote de bolachas e os três comeram-nas. O mais novo pediu-lhe água e ela deu-lha. O mais velho perguntou o que é que estavam a fazer ali. Ela disse que iam fazer um piquenique dentro do carro, para variar. Eles riram-se e acharam boa ideia. Depois queixaram-se do fumo e do calor. Pediram à mãe para ir para a praia. Enquanto tossia começou a sentir-se tonta. Eles queixaram-se com sono. Ela fechou-os num abraço e pediu-lhes que adormecessem. No sonho iam os três para a praia. Ouviam-se as ondas do mar e o cheiro a maresia subia-lhes pelas narinas acima e perfumava-lhes o corpo. À voz de Corinne Bailey Ray sobrepuseram-se os risos das crianças, descalças, na praia, a brincar numa poça, junto à beira-mar. A mãe abraçou-as, apertou-as contra o peito. Depois fechou os olhos com toda a força. Beijou-as na testa e sorriu. A praia era linda.
Não sei quem era a mulher mas imagino-a loura, com o cabelo apanhado por um gancho e com a pele branca, mas dourada pelo quente sol de Verão. Imagino-a a vestir os filhos à pressa, a guardar na mala um pacote de bolachas e uma garrafa de água e a puxá-los para dentro do carro. Tossia com a nuvem de fumo negro que continua a assolar o país e suava em bica enquanto sentava os filhos no banco de trás do carro cinza metalizado. Os vizinhos gritavam para não ir, os bombeiros estariam prestes a salvar-lhes a casa e as vidas. Mas ela não os ouviu, ignorou-os e disse que o fogo lhe podia levar a casa, os móveis, os electrodomésticos e todo o dinheiro mas que não lhe havia de roubar os filhos. Acenou um adeus à pressa e sentou-se ao volante. Os olhos choravam, vermelhos, brilhantes. Perto da retina ainda se avistava uma sombra de esperança. O céu era uma mistura de cinza escuro com laranja forte. As chamas e o fogo fundiam-se num só, com uma força de Adamastor, devorava pinhais, estradas, carris e tudo o que apanhava pela frente, a uma velocidade impressionante.
Ela ligou o motor do opel corsa e os filhos começaram a chorar. Eles olharam para trás e viram os vizinhos a dizer-lhes adeus, a chorar. As mais velhas olharam para o céu e rezaram ao ver o carro a afastar-se. Ela viu a casa, pela última vez, através do espelho retrovisor do corsa. A imagem já estava desfocada, o espelho perdera o brilho desde que o incêndio começara. As paredes estavam manchadas e o jardim coberto por uma camada fina de cinzas. Ela conduziu devagar pelas estradas apagadas e ligou a rádio. Ouvia-se a informação de que várias famílias estavam a abandonar as suas casas e as suas propriedades. O trânsito acumulava-se lentamente, numa luta cruel pela sobrevivência. As crianças choravam, gritavam e ela resolveu mudar a estação da rádio. O barulho dos aviões, das chamas, das sirenes dos bombeiros, das buzinas dos automóveis, contrastava com a serenidade e a doçura da voz de Corinne Bailey Ray a cantar “Like a Star”. O choro dos filhos começou a diminuir de tom. Ela olhou-os através do espelho retrovisor e sorriu. Disse-lhes que ia correr tudo bem. No sentido contrário da estrada vinha um carro a toda a velocidade e o homem que o conduzia esbracejava, gritava para que ela voltasse para trás. A estrada estava a ficar cercada pela fogo. Ela olhou em redor e viu as chamas a aproximarem-se, a devorarem o pinhal e as casas à volta a um ritmo alucinante. O homem acelerou o carro e desapareceu no meio do fumo. Ela olhou para os filhos e eles sorriram. Estavam calmos. Ela olhou mais uma vez em redor e viu o fumo a cercar o carro. A temperatura começou a aumentar muito depressa. O suor misturou-se com as lágrimas que lhe caiam do rosto. Desligou o motor do carro e aumentou o volume da rádio. Tirou o cinto e saltou para o banco de trás, para estar mais perto dos filhos. Sabia que ia morrer. Sabia que eles iam morrer. Tirou da mala o pacote de bolachas e os três comeram-nas. O mais novo pediu-lhe água e ela deu-lha. O mais velho perguntou o que é que estavam a fazer ali. Ela disse que iam fazer um piquenique dentro do carro, para variar. Eles riram-se e acharam boa ideia. Depois queixaram-se do fumo e do calor. Pediram à mãe para ir para a praia. Enquanto tossia começou a sentir-se tonta. Eles queixaram-se com sono. Ela fechou-os num abraço e pediu-lhes que adormecessem. No sonho iam os três para a praia. Ouviam-se as ondas do mar e o cheiro a maresia subia-lhes pelas narinas acima e perfumava-lhes o corpo. À voz de Corinne Bailey Ray sobrepuseram-se os risos das crianças, descalças, na praia, a brincar numa poça, junto à beira-mar. A mãe abraçou-as, apertou-as contra o peito. Depois fechou os olhos com toda a força. Beijou-as na testa e sorriu. A praia era linda.
3 comentários:
que bonito texto minina.
Por onde andas?
Saudades emigrasss!
só tu consegues transformar as histórias tristes em histórias lindas. quando escreveres um livro eu irei a correr comprá-lo!!!
Uma espécie de incêndio no coração! Beijos!
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