Quem conta um conto acrescenta um ponto...
Foi esse o desafio lançado pela revista Actua. Nesta edição fui convidada a acrescentar "um ponto" ao conto da edição anterior. Aqui vai:
O despertador tocou num tom grave, violento, estridente, quase ameaçador. Os raios de sol entravam timidamente pelo picotado das portadas majestosas de ferro verde. Uma mão engelhada empurrou o despertador para fora da mesa-de-cabeceira de verga, fazendo com que se calasse. O estrondo que a queda do relógio provocou arrancou Hércules - um cão de porte pequeno, rafeiro, com orelhas compridas e pêlo manchado de negro, que fazia lembrar uma vaca - da cama fofa forrada por uma manta de xadrez vermelho, em fazenda. Maria acordou com a língua áspera de Hércules a passar-lhe pelo rosto, em movimentos bruscos. A cauda do cão chicoteava alegremente os braços de Maria. Depois de abrir os olhos cumprimentou Hércules com festas e beijos no focinho peludo. Vestiu o roupão de lã cor de framboesa e lavou a cara na casa de banho ao fundo do corredor. Caminhou até à cozinha, em passos preguiçosos e arrastados, e pôs a água ao lume, para fazer um chá de cidreira. Sentia-se só, mais só do que nunca. No peito ecoava um vazio sufocante. Olhava em redor e a angústia da solidão deixava-a deprimida. Aos quarenta anos sobrava-lhe a companhia de Hércules, o único que nunca a desiludira, que nunca a traíra, que nunca a abandonara. Tirou o púcaro do lume e viu a sua imagem reflectida no inox envelhecido. O cabelo estava desalinhado, o castanho-escuro mesclado de um tom chocolate estava a perder terreno para os fios brancos rebeldes, que rompiam desordenadamente pela raiz. Os olhos estavam baços e pareciam mais pequenos. Os dentes outrora de uma brancura imaculada ganharam manchas, provavelmente um efeito da nicotina acumulada nos últimos anos. O sorriso tinha-se evaporado, como as lágrimas que lhe acabaram por secar a alma. Maria nem se lembrava do último dia em que as lágrimas lhe desceram do rosto, a pique. Simplesmente já não conseguia chorar. Preparou a infusão de cidreira fresca e deixou-se cair na cadeira estilizada. Trincou quatro biscoitos de canela e acendeu um cigarro. Hércules tinha-se aninhado nas pantufas felpudas de Maria. Pegou no jornal do dia anterior, cuja capa apresentava em destaque uma enorme fotografia de Obama, o recém-eleito Presidente dos Estados Unidos da América. Ele esboçava um sorriso contagiante. Por cima da fotografia de Obama uma frase ocupava a largura do jornal: Chegou a hora de mudar. Maria fixou os olhos naquela frase, palavra a palavra, durante dois minutos. Ouviu a sua voz interior repeti-la centenas de vezes. Sentia um calor a invadir-lhe o corpo. Não sabia se era um dos efeitos do chá ou se era outra coisa qualquer. Depois abriu o jornal exactamente na página dos classificados. Deslizou o dedo indicador pela página como se procurasse um número de telefone nas Páginas Amarelas. Prendeu-lhe a atenção um anúncio que tinha um fundo verde brilhante. Um fundo de esperança. Maria abriu uma gaveta junto ao fogão e pegou na tesoura de arranjar peixe. Com todo o cuidado recordou o anúncio. Dobrou-o e guardou-o no bolso das calças do pijama. Hércules ladrava numa histeria incompreensível. Seguia os passos da dona, transformando-se na própria sombra dela. Depois de tomar um duche bem quente, Maria vestiu uns jeans claros, uma camisola de gola alta justa, preta, que lhe fazia sobressair o volumoso peito. Olhou-se ao espelho e percebeu que estava viva. Escovou o cabelo e prendeu-o com força num elástico. Maquilhou-se de uma forma suave e discreta e envolveu-se numa chuva miudinha de perfume francês. Calçou as botas de cano alto e tirou do armário o casaco de fazenda. Hércules dava saltos, piruetas, parecia um cão de circo. Maria embrulhou-se no casaco e numa écharpe vermelha. Ia deitar o maço de cigarros no lixo mas resolveu guardar dois dentro da mala preta. O resto voou direitinho para o balde de metal que se apoiava num canto da cozinha. O telemóvel de Maria tocou. Ela olhou para o visor e ignorou a chamada, despreocupada. Fez uma festa a Hércules e despediu-se dele com um “até já”. Fechou a porta com segurança. O vento soprava sobre os cabelos de Maria. A temperatura na rua estava fria. O termómetro junto aos semáforos marcava 7 graus. A calçada era longa e o caminho ainda maior. Os saltos das botas de Maria de vez em quando ficavam presos nos defeitos da calçada. Os passos apressados corriam contra o tempo. A lembrança doce confundia-se com o aroma a bolos acabados de sair do forno da pastelaria central. A música que lhe entrava pelos ouvidos era aquela que nunca tinha chegado a sair. A frase. A frase mágica: Chegou a hora de mudar. Chegou a hora de mudar. A sinfonia das palavras provocava um sorriso discreto na expressão de Maria. Ele vinha distraído, a falar ao telemóvel. Levava debaixo do braço vários jornais e revistas. Exaltava-se a cada palavra. Negócios, provavelmente. Preocupações, problemas. De certeza. Era alto, moreno, com os olhos escuros mas brilhantes. Os seus lábios eram perfeitamente desenhados. O cabelo tinha o tom de avelã. Usava uma samarra azul-escura, de fazenda. O cachecol bege enrolava no pescoço e caía sobre a samarra. As calças de bombazina castanhas estavam-lhe largas. Ele não tinha mais de trinta anos. Maria tinha ascendido à lua e parecia flutuar no universo. Ele estava preso à terra, demasiado preso até. Caminhava rapidamente pela calçada íngreme. Um carro buzinou e ele fixou o olhar naquele trânsito infernal enquanto continuava a discutir ao telefone. Maria deu um passo em falso e o tacão das botas prendeu-se numa folga entre duas pedras da calçada. Quando se preparava para avançar, ele deparou-se com Maria ali mesmo à sua frente. Não deram um encontrão porque ele resolveu apoiar-se num candeeiro. Mas escorregaram-lhe todos os jornais, que foram direitinhos para o chão. Houve um que caiu mesmo aos pés de Maria. Era igual ao que ela tinha em casa. Ficaram os dois a olhar para Obama a sorrir. Tinha chegado a hora de mudar.