29 dezembro, 2008

avó


A vela está com uma chama que se tenta impor perante os movimentos bruscos do ar. É injusto morrer-se numa cama de hospital. É injusto partir doente, debilitada, cansada. É injusto deixar-nos quando ainda nos faz tanta falta. É terrivelmente injusto vê-la partir aos poucos. Mais do que isso, é injusto a minha avó ter noção de que vai partir em breve. Foi uma pneumonia que a atirou à cama, depois de se ter começado a render ao cansaço do coração e à tristeza de ter perdido o meu avô. A minha avó é a matriarca. Nasceu princesa em S. Miguel. O pai era farmacêutico e morreu quando a filha Olga tinha apenas três anos. Três meses depois morria a minha bisavó com um filho ainda no ventre, que também não sobreviveu. Era diabética e depois da morte do marido, que lhe controlava a comida, os níveis de açúcar no sangue acabaríam por se descontrolar. A minha avó foi assim criada pelo avô, um grande pianista, a madrinha, e as primas. Cresceram todas juntas, como irmãs. Contou-me tantas aventuras que viveu na ilha e nunca se cansou de revelar o episódio em que conheceu o meu avô, que entretanto tinha ido fazer a tropa para S. Miguel. Eram lindíssimos. A minha avó continua a ser. Loira, com cachos largos e brilhantes e a pele branca acetinada. Os olhos eram duas estrelas cintilantes, cheias de vida, mas agora parecem vazios, desorientados e opacos. O meu avô parecia um galã de cinema. Olharam-se e apaixonaram-se. Primeiro o meu avô apaixonou-se pelos tornozelos da minha avó. A minha avó casou-se por procuração na ilha para ter uma grande festa, com tudo a que tinha direito sem a presença do meu avô que estava cá no continente. Depois veio ter com ele e a vida de princesa chegava ao fim. Augusto, comunista de gema, recusou-se a colaborar com o regime de Salazar e ficou desempregado durante sete anos já a minha avó tinha três crianças seguidas. Passaram fome, trabalharam muito para ganhar uns tostões. A minha avó sempre teve muito jeito para as artes e começou a fazer bonecas feitas de conchas para vender aos turistas. O meu pai e o meu tio corriam as praias para apanhar o material de que a minha avó precisava. Com o fim da Ditadura o meu avô conseguiu arranjar emprego e a vida melhorou substancialmente. Mas a Maria Olga nunca mais voltaria a ter a vida de princesa. Se bem que sempre achei que a minha avó tem um ar aristocrata, de senhora- talvez seja por isso que me custe tanto a vê-la ali, deitada na cama, sem colares, sem brincos, sem baton, sem verniz nas unhas, com o cabelo branco a sobrepor-se ao loiro, triste, rendida à doença e ao cansaço. Hoje apertou-me a mão e disse-me numa voz quase imperceptível que eu era muito querida. Fiquei com um nó na garganta, tive de fazer um enorme esforço para não deixar cair as lágrimas que estavam a romper dos meus olhos. Limitei-me a sorrir e transmiti-lhe toda a força que tinha, que já começa a ser pouca. Queria dizer-lhe que vem para casa amanhã, queria ir buscar-lhe a roupa e os sapatos para irmos embora, queria convidá-la para almoçarmos no restaurante. Faço um enorme esforço para acreditar que isso ainda é possível, que ainda vou ter a minha avó por perto durante mais algum tempo. Mas são 87 anos e o coração está cansado. Ainda não estou preparada mas tenho de começar a pensar na despedida.

3 comentários:

Andreia disse...

Por experiência própria sei que é extremamente penoso ver alguem de quem gostamos partir.

Muita força para as duas!

Anónimo disse...

Muito obrigada,Andreia.
Beijinhos

Anónimo disse...

Desejo-te muita força e coragem!

bj muito grande