Li há uma semana esta crónica, que me deixou arrepiada pelas verdades que emana. É de uma brutalidade impressionante, crua. Talvez seja isso que tanto me fascina nela. Mal a acabei de ler não hesitei. Arranquei-a da revista e guardei-a na mala. Hoje descobri-a, outra vez.
"Não vais fazer nenhuma lista de coisas para fazer este ano. As listas consecutivas esfregam-te a cara, todos os anos, o que deixaste de fazer, mostram-te que não cumpres promessas, da mais simples à mais idílica. Ou talvez nem seja por isso, por esse receio de falhar uma e outra vez, perante ti, só perante ti, que mais ninguém as lê ou sabe que existem, porque há-de te importar tanto? Mas talvez nem seja por isso, mas porque as listas são desejos apressados, uma vez que cada ano te esfrega que os terás cada vez menos. Lá estás tu a fazer contas aos mortos. Tétrico, tu, na saison do amor e da bonomia. Contas aos mortos morridos, mais contas de cabeça a tentar antecipar quem não há-de viver outro Natal, já sem contar com os imponderáveis, aqueles que vão desaparecer sem que nada o anuncie, gente nova, acidentes, ou gente mais velha que ainda respira saúde, ou pensavas que sim mas vai-se a ver e também eles, tu pões-te logo a pensar se era assim que previa partir, daquela maneira, num dia assim, e ainda não chegaste a nenhuma conclusão quando pensas no teu caso, tétrico, tu, na época da festa, da paz entre os homens, na alvorada de um ano novo, e a palavra novo deveria encher-te o peito com uma qualquer esperança, porque pensas nisso agora? Será porque morreu aquele que não esperavas, e que era um homem bom, e perguntaste mais de mil vezes, seu ingénuo indignado, porque é que morrem homens bons, ou será também porque aquele outro que admiras já só responde que anda a negociar com a morte mais um bocadinho, e esfrega-te assim na cara que também ele, um dia destes. É só isto, afinal, cada Natal que passa traz outro já agarrado, o próximo, que já percebeste que vai chegar num instantinho, é só isto afinal, amor e morte. Lembras-te que é o que ocorre. Não só a primeira coisa que te ocorre, mas agora a única resposta que te aparece, a única, quando te perguntam o que te motiva a escrever, onde vais buscar inspiração, de que procuras falar nos romances, essas histórias aparentemente diferentes com que os escritores pintam sempre e sempre o mesmo quadro, amor e morte. O que mais desejas e o que mais odeias. Será isto envelhecer? Perceber que a vida, retirada toda a gordura das pequenas insignificâncias inconsequentes, será esta dança entre as duas palavras, a agarrarmo-nos com um feliz desespero a uma para tentarmos (ingénuos) fugir à outra. Lembras-te, de quando em vez, de uma mulher, a quem a desgraça fez companheira uma vida inteira, que te afirmou sem hesitar, baixinho, que não temia a morte porque a morte já não lhe podia fazer mal. O que te pareceu absurdo pois eras jovem, e já não te parece tanto agora, será isto envelhecer, quando faz sentido que se encolha os ombros perante o desaparecimento inevitável. Ou porque sabes hoje, o que só podes saber em virtude teres envelhecido, que a morte só não pode fazer mal a quem o amor não apareceu, ou a quem o amor apareceu disfarçado de outra coisa, e arranhou e magoou. O que te chateia na morte é uma coisa simples: saudades de amar e ser amado. Por isso, aproveita, estúpido, esta circunstância de acordares todos dias. Não me perguntem mais onde vão os escritores buscar ideias, só há duas, quando escrevemos sobre os ossos da existência e não nos limitamos ao era uma vez da carochinha. Amor e morte, sempre, porque não há mistério que se lhe compare. E eu quero escritores que perguntam. E que não ousam ter respostas."
Rodrigo Guedes de Carvalho
3 comentários:
poderoso!!!
Olha, vai antes ao cinema!:-) Ver o Vicky Barcelona, ou lá como se chama o filme!
Gosto do tipo espanhol cujo nome também nunca sei. E do filme também!
Já vi. Também gostei do filme. Achei piada ao facto de serem as mulheres a fugir dos homens! Retém na memória: Javier Bardem!(eu sei que é bem mais fácil reter a imagem dele) E se está giro no filme!!! Faz-me sempre lembrar o Denny Duquette, da Grey's Anatomy.
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