ARTE SEM TECTO
É uma galeria diferente. Os artistas são diferentes. E todos são convidados a entrar. Ou melhor, obrigados a entrar. Desde os velhos casais que carregam as compras apressadamente na esperança de não perder o autocarro, até aos mais jovens que param nas casinhas de artesanato para verem as novidades. Por vezes, esquecem-se de que estão a atravessar uma galeria. E esquecem-se sobretudo de que aquela rua é uma morada da arte.
Na Baixa lisboeta, a Rua Augusta é a nova casa dos pintores de rua. A grande calçada do início alberga cerca de 8 pintores. Expositores improvisados, feitos com antigas tábuas de madeira, mostram a técnica, os materiais e até a alma daqueles homens que seguram o pincel ou o lápis como se fossem objectos preciosos. Aguarelas que revelam os recantos da cidade, esboços de caras em carvão, réplicas de fotografias e postais a óleo são muitas das obras de arte que ali podemos encontrar. São artistas diferentes. Estão ali por motivos alheios aos outros pintores. Alguns pintam para agarrar a vida e pagar a droga. A maioria divide os quartos numa pensão ali perto, “medonha”, como classifica Pedro Jesus- um homem aparentemente jovem, de cabelos escuros e desgrenhados que fala com um olhar expressivo. Tão expressivo que chega a incomodar. Veste uma grossa camisa de flanela ao xadrez cujo bolso está descaído com o peso dos lápis. Entre desabafos e queixas, Pedro Jesus conta que ali a “concorrência é a droga”. A rivalidade entre pintores aumenta quando se trata de arranjar dinheiro para a droga. Pedro desde sempre que está ligado às artes. Durante 17 anos fez traço e depois a pintura surgiu naturalmente, assim como o artesanato. Enquanto fala, mete a mão num saco de plástico e tira uma mala feita em couro castanho. “Esta foi a primeira mala que fiz”, diz com um brilho no olhar. Mas é a pintura que lhe paga as contas: “Sobrevivo da pintura, com muita dificuldade.” O facto de ser judeu permite-lhe fazer jejum quando o dinheiro não chega, porque os portugueses são maus consumidores de obras de arte. Pelo menos da sua pintura, dita transcendente, na qual expõe “formas cabalísticas da árvore da vida e do mundo judaico”. Cores fortes misturadas com espaços vazios, linhas dispersas e objectos desconhecidos são a verdadeira testemunha do percurso de vida que Pedro Jesus tem levado. Rabiscos de loucura cruzam espaços imaculados. Nem os preços baixos da pintura de Pedro entusiasmam os portugueses. “Compram muito raramente. Só os velhotes.” É por isso que vai para Inglaterra. Já esteve noutros países da Europa, onde foi tratado com toda a dignidade e onde o seu talento foi reconhecido e espera regressar se a situação em que vive actualmente não se alterar. O facto de a Câmara de Lisboa ter mudado os pintores do Chiado para a R. Augusta teve consequências na venda das pinturas, segundo o pintor: “aqui em baixo não se vende nada. Foi a Câmara que quis arranjar dinheiro alugando este espaço.” Vieram para a Rua Augusta porque os comerciantes não gostavam deles nem dos amigos sem-abrigo que por lá apareciam. Com as mãos nos bolsos das calças e com o olhar a penetrar a calçada, Pedro Jesus faz o seu último desabafo: “nós somos tratados como tudo menos como artistas”. Do outro lado da rua está um homem muito alto, com o cabelo louro apanhado por um elástico e uns olhos muito azuis que revelam simpatia. Tem as mãos sujas de tinta em tons de azul e amarelo. Está a alinhar as suas telas para que todos as vejam, para que todos as comprem. Ali é o pintor que tem mais pinturas expostas. Tem uma autêntica banca muito bem arrumada. As paisagens são o seu tema de eleição. Lugares desconhecidos, de sonho, postais onde as cores se esbatem e formam universos magníficos. Konstantine Skrynnikov é um russo que chegou a Portugal há apenas um ano e meio. Apesar das dificuldades que tem com a língua portuguesa, sorri quando fala no país que o acolheu: “vim para aqui e quero ficar”. Foi na Rússia que estudou pintura, durante cinco anos, na universidade. Trabalhou a maioria do tempo como pintor, depois resolveu ir dar aulas durante três anos. Mas a crise que se faz sentir no seu país natal obrigou-o, aos 41 anos, a deixar a família e a vir para Portugal à procura de emprego. Gosta de estar ali, na rua, sentado numa cadeira a pintar, ao lado dos expositores, enquanto os potenciais clientes vão elogiando a sua obra. Por detrás destes pintores que tentam vender aquilo que de melhor fazem aos que, indiferentes e apressados, passam por aquela agitada rua, estão dramas humanos, histórias de pessoas que apenas vão sobrevivendo. Se há alguns artistas de rua que pintam a realidade em que vivem, as condições de sobrevivência que têm de ultrapassar todos os dias, outros pintam paisagens paradisíacas, como se procurassem uma morada.
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