25 setembro, 2005

FILIPE LA FÉRIA: Quando um homem sonha...

Ontem vi uma entrevista ao La Féria na televisão. E lembrei-me do dia em que o entrevistei, há dois anos atrás. Foi uma experiência muito interessante. Lembro-me de que senti algum receio. Pois toda a gente me dizia: vais entrevistar aquele mau feitio? Mas lembro-me também de que esse senhor foi simplesmente fantástico comigo, de uma simpatia extrema. Nunca irei esquecer esse dia. Tenho a certeza.
Ás vezes tenho tantas saudades de escrever reportagens e perfis... Pode ser que um dia volte ao jornalismo...


Era uma vez um menino que brincava no quintal da avó aos teatros, na Aldeia Nova de S. Bento. Escrevia peças, montava cenários com as velhas caixas de sapatos, era encenador e representava. A história podia começar assim, como num conto. Afinal, foi esse poder de criação que o levou para o mundo do teatro. Escritor, encenador, cenógrafo, dramaturgo, actor e empresário, Filipe La Féria construiu um percurso de vida que hoje, aos 58 anos, o torna um mito do teatro português.


A cortina de veludo bourdeaux do Politeama eleva-se ao céu, acompanhando o ritmo da música. O espectáculo Minha Linda Senhora termina. Agora, os actores esperam, uns sentados comodamente no palco, outros encostados aos cenários, pelas indicações do encenador e do seu assistente. Filipe La Féria bate as últimas palmas e dirige-se para o palco: “Tens de olhar mais para ela. Observa-a!”, aconselha ao actor Nuno Guerreiro, que desempenha o papel de Professor Higgins. Depois, exemplifica ele próprio e pede aos actores para repetirem a cena enquanto, de braços cruzados e de olhos atentos, estuda os pormenores dos movimentos e da postura de Nuno Guerreiro. Meia hora bastou para corrigir os erros, no ensaio geral, de onde Filipe La Féria saiu satisfeito. Minha Linda Senhora, em cena desde Dezembro do ano passado, conta já com mais de 100 mil espectadores.
“O meu sonho era ser encenador, era fazer espectáculos. Mais do que ser actor”, revela La Féria com um intenso olhar, no seu escritório, no primeiro andar do Politeama, virado para a Rua das Portas de S. Antão. Um gabinete arejado, luminoso, com uma mesa de reuniões e uma secretária, em cima da qual tem emoldurado um grande retrato, a preto e branco, de Amália.
Desde criança que a imaginação lhe permitia entrar noutros mundos. Fazia peças na sua terra natal, no Alentejo, nas quais desempenhava todas as funções possíveis, desde escritor a cenógrafo. A mudança para Lisboa aproximava-o do mundo do espectáculo mas, nos anos 60, havia um grande preconceito em relação aos artistas e, por isso, teve de enfrentar a sua família, que “ nada tinha a ver com o teatro”. Hoje essa situação é inversa, na perspectiva de Filipe La Féria. Agora, “os pais empurram os filhos para a televisão para irem fazer figuras tristes”. No entanto, foi pela mão do actor Raúl de Carvalho, amigo do pai, que se estreou no Teatro Nacional D. Maria II. Tinha apenas 16 anos quando pisou o palco pela primeira vez na Companhia de Amélia Rey Colaço. A partir daí a sua vida foi sempre para o palco.
“Trabalhei muito”, orgulha-se o homem de cabelo branco, sorridente, de voz rouca e arrastada, que se vai acomodando no cadeirão de pele, em frente à secretária. Mesmo quando ganhou uma Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para ir estudar teatro para Londres. Trabalhou como empregado de mesa num restaurante de luxo em plena Kings Road, porque a bolsa não chegava para sobreviver. Foi lá que Carlos Avillez o foi buscar. Para que La Féria fosse substituir Mário Viegas, que tinha sido preso. A peça estreava dentro de dois dias em Paris e era necessário “um actor em que ele tivesse confiança e que, num espaço de um dia ou de dois, fizesse o papel”. Depois disso regressou a Londres mas os convites para trabalhar em Portugal iam chegando e as saudades da família e dos amigos fizeram com que Filipe La Féria voltasse para Lisboa. Mas hoje não faria o mesmo e fala nos tempos em que passou em Inglaterra com grande nostalgia: “Arrependo-me de não ter ficado lá. Porque, embora eu não domine bem o inglês, eles acharam que podia fazer uma carreira como encenador. Eles, os professores ingleses, que sempre acreditaram no sucesso de La Féria.
Voltou para Portugal e passou por várias companhias de Teatro: Teatro Estúdio de Lisboa, Teatro Experimental de Cascais, Casa da Comédia e Teatro da Cornucópia. Em 1993, foi a vez de remodelar o Teatro Politeama, a sua segunda casa.
Mas teria ficado em Londres porque Inglaterra é um país bastante organizado, onde é fácil viver. “É um país que gosta tanto de teatro como nós gostamos de futebol, não é?”, solta uma gargalhada sarcástica. Filipe La Féria é um homem bem humorado, espontâneo, amável, que revela nos gestos e no olhar uma constante inquietação.
“Os ingleses gostam muito de si mesmos, da sua história e só o povo que goste muito da sua história é que gosta de teatro”. Pois, para La Féria, “o teatro é a representação da história”.
Teria ficado em Inglaterra porque está triste com o sistema em que o seu país está afundado. Disso já toda a gente sabe. O encenador foi sempre muito frontal nas suas intervenções públicas acerca da política cultural adoptada pelos governos PS e PSD. “Não sou nada politicamente correcto. Mas um artista nunca pode ser politicamente correcto, senão não é artista”, confessa Filipe La Féria que, enquanto gesticula com as mãos, esboça um sorriso. “Sou tão crítico do mundo porque quero melhorá-lo, quero transformá-lo... o artista é o homem que transforma as coisas!”. À medida que vai soltando as palavras, junta as mãos e encosta-as ao queixo, como se implorasse para que o deixassem mudar o mundo.
Filipe La Féria considera-se, antes, “criticamente correcto”, uma vez que julga ter a obrigação de mostrar às pessoas o estado em que o teatro e o próprio país estão. “Vivemos agora numa grande crise de cultura, de identidade. O Teatro Nacional está preeminentemente fechado, não há um Teatro Nacional de Ópera...”, diz o encenador, revoltado. Atribui as responsabilidades ao Estado que, segundo La Féria, “não nasceu nem para artista nem para empresário”. Aliás, as polémicas acerca da política de atribuição dos subsídios estão intimamente ligadas a este homem das artes. Desde a peça Rosa Tatuada (1999) que não lhe são atribuídos subsídios porque tem bastante sucesso, argumento que o deixa pasmado: “O ter muito público em Portugal é pejorativo. Isso é completamente absurdo”, comenta, abanando a cabeça. Defende ainda que o Estado deveria ajudar na parte estrutural dos teatros, nos investimentos das próprias salas bem como na sua protecção (para que não fossem destruídas). Essa ajuda seria fundamental, agora, que comprou o Olympia. “Gasta-se tudo e fica-se a dever mais”, argumenta, levantando o sobrolho ao mesmo tempo que solta um suspiro.
Projectos tem muitos. Desde criar uma Escola de Teatro e de Dança a levar Shakespeare a palco. Televisão já experimentou várias vezes, mas a Sétima Arte é ainda um sonho: “Gostava muito de fazer cinema, como actor ou como realizador”.
Enquanto fala, Filipe La Féria vai rabiscando uma folha branca. Desenha uma espécie de escadas. Talvez aquelas que o levaram ao êxito. “ Do que eu gosto é de começar numa folha assim, completamente branca, e depois saber que dali vai nascer um espectáculo”, revela, entusiasmado. É à vida, às memórias e à análise do quotidiano que Filipe La Féria vai buscar inspiração para os seus espectáculos. É assim que nas folhas vão nascendo corpos, vozes, ritmos, cheiros... preparados para subirem aos palcos!