19h45. Cais do Sodré. Mal avisto a estação deparo-me com uma fila gigantesca de carros, vindos de todos os sentidos. Polícias de trânsito que tentam organizar aquilo que não era possível: o estacionamento dos carros. A Sara, que é uma grande amiga minha, e que leva tudo para a risota, lembra-se de começar a cantar uma marcha. A Luz, que está sentada no lugar de trás, tem vontade de nos acompanhar mas não sabe bem a letra. O pior é que nós também não passamos do refrão. Mas fazemo-nos ouvir: abrimos as janelas e cantamos bem alto.
Só perto da Feira da Ladra é que conseguimos estacionar. Mesmo em cima da passadeira. Aproxima-se um arrumador, com um sorriso amável e um olhar terno: “não se preocupem que hoje não há problema”. Mais de quarenta minutos à espera da Maria, das suas irmãs e de umas amigas. Finalmente chegam.
Descemos a calçada de S. Vicente e a fome começa a apertar. Olho para um lado e vejo mesas espalhadas por todos os cantos, postas à pressa. De cada prédio nascem fogareiros improvisados, empregados improvisados, restaurantes improvisados. Mas gosto daquela agitação. Gosto de ver as pessoas pacientemente à espera de um lugar para jantar. Só porque é uma noite diferente de todas as outras. E dos turistas deslumbrados a olhar ao seu redor com uma expressão de estranheza e de entusiasmo. Meto-me na fila. “Vai demorar”, diz a senhora, desorientada, enquanto corta um chouriço. A fila vai crescendo e a senhora não dá conta do recado. Mais meia hora a vermos travessas de sardinhas a passarem-nos pelo nosso nariz. Chega a Sara com copos de sangria. Está doce e fresca! Quarenta e cinco minutos a mais e a nossa paciência começa a chegar ao limite. Mas continuo encantada com o ambiente que nos envolve. A música marca o tempo a passar e a senhora lá se resolve a atender-nos. Milagre de Santo António! Um prato com duas sardinhas enfiadas em duas carcaças. Olho para um lado, olho para o outro e as mesas estão todas ocupadas. Lá ao fundo, a Sara começa a acenar. Encontra um lugar improvisado, como tudo naquele santo dia. Lá nos instalamos, mesmo por baixo de uns andaimes de um prédio que está a ser remodelado. A iluminação não é a melhor mas temos uma espécie de banco corrido onde nos podemos sentar comodamente e um caixote do lixo pronto para receber as espinhas - que não são poucas! Sento-me ali e delicio-me com a paisagem e com as sardinhas. Pessoas à janela que espreitam a sua rua, que nesta noite é mais dos outros do que delas. Sinto-me portuguesa, sinto-me lisboeta e tenho orgulho disso. Despejadas as espinhas começamos a seguir a multidão. Caminhamos sem destino atrás de desconhecidos, atrás da música que vai variando de rua para rua. Fico desiludida com o som que sai de cada aparelhagem. A música popular portuguesa foi substituída por brasileira. E dos bailaricos de que tantas vezes me falaram nem sinais!
Subimos mais uma calçada. É um caminho íngreme que nos leva até ao castelo. A folia continua. É impossível ficar indiferente a tanta agitação, a tanto divertimento. Paramos aqui mesmo em frente à roulote dos churros para dançar. Cruzo-me com conversas paralelas. Falo com desconhecidos. Nem sei bem de quê e isso não me interessa porque o que nos aproxima é aquela folia, aquele entusiasmo que somos quase obrigados a sentir. Olho para trás e há um olhar que me prende e que me faz estremecer. Penso como é que é possível no meio de tanta gente encontrá-lo. Mas ao mesmo tempo reconheço que mesmo antes de ir para Lisboa tinha pensado nessa possibilidade. Que à partida era remota… Ele aproxima-se de mim. Sorri. Estou desconfortável e ele também. Olho para ele e recordo aquela noite, o momento em que nos conhecemos. Lembro-me da estranha coincidência, que só descobri quando voltei para casa… Como é que nunca nos cruzámos antes? Ele pergunta-me se estou bem. Respondo que sim de imediato. Não quero que ele perceba o meu constrangimento. É nestas alturas que fico contente por a nossa alma ser opaca. As palavras chave já foram ditas. E agora? De que é que falamos? Olho novamente para ele e lembro-me daquela noite em que não lhe liguei nenhuma. Mas um mês depois tudo tinha mudado. Olho nos teu olhos e vejo que queres dizer tantas coisas mas não consegues e eu também não. Falamos de temas que não interessam naquele momento como o trabalho e a faculdade numa tentativa de camuflar as emoções. Temos tanto para dizer um ao outro mas não dizemos. Porque me apetece provar novamente o doce da tua boca. Porque me apetece dar-te um abraço bem apertado. Perder-me no teu olhar, nas tuas histórias, no teu sorriso. Que saudades. Mais uma vez as linhas das nossas vidas se cruzam. Mais uma vez estranhamente. A Sara puxa-me: “vamos andando!”. Olho para ti. Dou-te um beijo na cara, à pressa. Sorris e segredas-me ao ouvido: “ Gostei muito de te ver”. Uma frase incompleta a que eu não pude responder. Vou caminhando, olhando para trás, mas já não te vejo. Desapareces no meio da multidão. Sinto-me mal. Queria ter-lhe dito tanta coisa mas o orgulho impediu-me de o fazer. Acho que nunca amei verdadeiramente ninguém mas por ti sinto qualquer coisa que nunca senti por ninguém. Uma coisa forte que me aperta o peito, que me torna diferente daquilo que eu sou. Sinto a tua falta. Olho mais uma vez. Não te encontro. Fico triste.
Perco-me agora nos passos de dança porque já não há espaço para soltar o corpo. Somos empurradas para outra rua. Começa a ficar asfixiante andar por ali. Há gente estranha que quer estragar uma festa que é de todos. É lançada uma garrafa de cerveja na multidão. Felizmente que não acerta em ninguém. É triste e as ruas estão a ficar cada vez mais pequenas.
Percorremos quilómetros sem ter noção disso. Aqui, as distâncias parecem tão insignificantes. Começo a ouvir ambulâncias. O ambiente festivo começa a dar lugar a uma certa confusão. Isso incomoda-me. A mim e às outras. Olhamos para o relógio. Solto um bocejo. Chegou o momento de subirmos a calçada de S. Vicente e caminhar até à Feira da Ladra. As pernas começam a pesar mas falta pouco para chegar ao estacionamento. Há menos gente para aqueles lados e eu começo a sentir um vazio. Procuro reconforto na lua, não sei porquê mas o luar transmite-me sempre paz. Vislumbro o Panteão Nacional, que parece mais bonito e mais imponente à noite. Entramos no carro. Olho através da janela. A cidade de Lisboa vai ficando para trás. O som da música vai diminuindo, as cores das bandeirinhas que se tentam equilibrar nas cordas vão ficando esbatidas, a multidão transforma-se me formiguinhas. A única coisa que permanece da noite é cheiro a sardinha assada, que fica entranhado na nossa pele e nas nossas narinas. E as saudades dele. Fecho os olhos e adormeço.
Só perto da Feira da Ladra é que conseguimos estacionar. Mesmo em cima da passadeira. Aproxima-se um arrumador, com um sorriso amável e um olhar terno: “não se preocupem que hoje não há problema”. Mais de quarenta minutos à espera da Maria, das suas irmãs e de umas amigas. Finalmente chegam.
Descemos a calçada de S. Vicente e a fome começa a apertar. Olho para um lado e vejo mesas espalhadas por todos os cantos, postas à pressa. De cada prédio nascem fogareiros improvisados, empregados improvisados, restaurantes improvisados. Mas gosto daquela agitação. Gosto de ver as pessoas pacientemente à espera de um lugar para jantar. Só porque é uma noite diferente de todas as outras. E dos turistas deslumbrados a olhar ao seu redor com uma expressão de estranheza e de entusiasmo. Meto-me na fila. “Vai demorar”, diz a senhora, desorientada, enquanto corta um chouriço. A fila vai crescendo e a senhora não dá conta do recado. Mais meia hora a vermos travessas de sardinhas a passarem-nos pelo nosso nariz. Chega a Sara com copos de sangria. Está doce e fresca! Quarenta e cinco minutos a mais e a nossa paciência começa a chegar ao limite. Mas continuo encantada com o ambiente que nos envolve. A música marca o tempo a passar e a senhora lá se resolve a atender-nos. Milagre de Santo António! Um prato com duas sardinhas enfiadas em duas carcaças. Olho para um lado, olho para o outro e as mesas estão todas ocupadas. Lá ao fundo, a Sara começa a acenar. Encontra um lugar improvisado, como tudo naquele santo dia. Lá nos instalamos, mesmo por baixo de uns andaimes de um prédio que está a ser remodelado. A iluminação não é a melhor mas temos uma espécie de banco corrido onde nos podemos sentar comodamente e um caixote do lixo pronto para receber as espinhas - que não são poucas! Sento-me ali e delicio-me com a paisagem e com as sardinhas. Pessoas à janela que espreitam a sua rua, que nesta noite é mais dos outros do que delas. Sinto-me portuguesa, sinto-me lisboeta e tenho orgulho disso. Despejadas as espinhas começamos a seguir a multidão. Caminhamos sem destino atrás de desconhecidos, atrás da música que vai variando de rua para rua. Fico desiludida com o som que sai de cada aparelhagem. A música popular portuguesa foi substituída por brasileira. E dos bailaricos de que tantas vezes me falaram nem sinais!
Subimos mais uma calçada. É um caminho íngreme que nos leva até ao castelo. A folia continua. É impossível ficar indiferente a tanta agitação, a tanto divertimento. Paramos aqui mesmo em frente à roulote dos churros para dançar. Cruzo-me com conversas paralelas. Falo com desconhecidos. Nem sei bem de quê e isso não me interessa porque o que nos aproxima é aquela folia, aquele entusiasmo que somos quase obrigados a sentir. Olho para trás e há um olhar que me prende e que me faz estremecer. Penso como é que é possível no meio de tanta gente encontrá-lo. Mas ao mesmo tempo reconheço que mesmo antes de ir para Lisboa tinha pensado nessa possibilidade. Que à partida era remota… Ele aproxima-se de mim. Sorri. Estou desconfortável e ele também. Olho para ele e recordo aquela noite, o momento em que nos conhecemos. Lembro-me da estranha coincidência, que só descobri quando voltei para casa… Como é que nunca nos cruzámos antes? Ele pergunta-me se estou bem. Respondo que sim de imediato. Não quero que ele perceba o meu constrangimento. É nestas alturas que fico contente por a nossa alma ser opaca. As palavras chave já foram ditas. E agora? De que é que falamos? Olho novamente para ele e lembro-me daquela noite em que não lhe liguei nenhuma. Mas um mês depois tudo tinha mudado. Olho nos teu olhos e vejo que queres dizer tantas coisas mas não consegues e eu também não. Falamos de temas que não interessam naquele momento como o trabalho e a faculdade numa tentativa de camuflar as emoções. Temos tanto para dizer um ao outro mas não dizemos. Porque me apetece provar novamente o doce da tua boca. Porque me apetece dar-te um abraço bem apertado. Perder-me no teu olhar, nas tuas histórias, no teu sorriso. Que saudades. Mais uma vez as linhas das nossas vidas se cruzam. Mais uma vez estranhamente. A Sara puxa-me: “vamos andando!”. Olho para ti. Dou-te um beijo na cara, à pressa. Sorris e segredas-me ao ouvido: “ Gostei muito de te ver”. Uma frase incompleta a que eu não pude responder. Vou caminhando, olhando para trás, mas já não te vejo. Desapareces no meio da multidão. Sinto-me mal. Queria ter-lhe dito tanta coisa mas o orgulho impediu-me de o fazer. Acho que nunca amei verdadeiramente ninguém mas por ti sinto qualquer coisa que nunca senti por ninguém. Uma coisa forte que me aperta o peito, que me torna diferente daquilo que eu sou. Sinto a tua falta. Olho mais uma vez. Não te encontro. Fico triste.
Perco-me agora nos passos de dança porque já não há espaço para soltar o corpo. Somos empurradas para outra rua. Começa a ficar asfixiante andar por ali. Há gente estranha que quer estragar uma festa que é de todos. É lançada uma garrafa de cerveja na multidão. Felizmente que não acerta em ninguém. É triste e as ruas estão a ficar cada vez mais pequenas.
Percorremos quilómetros sem ter noção disso. Aqui, as distâncias parecem tão insignificantes. Começo a ouvir ambulâncias. O ambiente festivo começa a dar lugar a uma certa confusão. Isso incomoda-me. A mim e às outras. Olhamos para o relógio. Solto um bocejo. Chegou o momento de subirmos a calçada de S. Vicente e caminhar até à Feira da Ladra. As pernas começam a pesar mas falta pouco para chegar ao estacionamento. Há menos gente para aqueles lados e eu começo a sentir um vazio. Procuro reconforto na lua, não sei porquê mas o luar transmite-me sempre paz. Vislumbro o Panteão Nacional, que parece mais bonito e mais imponente à noite. Entramos no carro. Olho através da janela. A cidade de Lisboa vai ficando para trás. O som da música vai diminuindo, as cores das bandeirinhas que se tentam equilibrar nas cordas vão ficando esbatidas, a multidão transforma-se me formiguinhas. A única coisa que permanece da noite é cheiro a sardinha assada, que fica entranhado na nossa pele e nas nossas narinas. E as saudades dele. Fecho os olhos e adormeço.
3 comentários:
no meio de tantos ambientes estranhos o que é inivitavel acaba por nos encontrar... Gostei de ler o teu texto, porque me imaginei com vocês no carro, nas ruas, a comer sardinhas, a rir, a perder-me, a cansar-me, a tentar encontrar o carro, a olhar para os prédios que têm outra luz na noite dos santos. "Queria ter-lhe dito tanta coisa mas o orgulho impediu-me de o fazer." pensamos sempre que é o orgulho, mas orgulho de quê? Se calhar é uma questão mais do acaso, ou de uma mordaça invisivel que te impede de dizer certas coisas porque (nao) calhou. Talvez não era suposto dizeres nada, porque as palavras as vezes nao bastam. As vezes sentimos as pessoas sem precisar de dizer nada. Bem, acho que ja estou a nomadizar de mais, o essencial é que sentiste uma noite magica, em que tudo faz sentido, um pouco da magia do mundo? Esta a chegar o verão e o tempo de criar novas saudades.
Saudades, Tita Xana
Texto lindo... devias ter-lhe dito o que te vai na alma!!!
É o conselho de quem já se arrependeu 1000 vezes daquilo que ficou por dizer.
Beijos muitos
Rita e Manel
saudades destes teus textos! :)
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