13 junho, 2006

Tenho amado ler o Miguel...
AMAR
"O amor começa pelo amor. É o céu. O céu foi criado primeiro. A paixão é um impulso físico, matrial, mensurável, explicável por todas as ciências da atracção. É o mar. O mar está mais perto de nós. Podemos chegar ao fundo dele. A diferença entre o amor e a paixão é como a diferença entre a cosmologia e a oceanografia. O mar tem fim, tem peso, tem vida. O céu não tem limite. O céu é dos astrónomos e dos poetas, que sabem que hão-de morrer sem percebê-lo. O mar é dos cientistas e observadores, que podem passar a vida dentro dele, sabendo que é finito e perceptível. O céu, como o amor, tem Deus acima dele. O mar, como a paixão, tem o Homem lá dentro. Compare-se o efeito que os anjos têm sobre nós. com o que têm as sereias e perceber-se-á a distância entre a religião e a mitologia. A religião é uma coisa de Deus, do amor - a mitologia é uma coisa de pessoas-feitas-deuses, de paixão.
Como coincidem tantas vezes amor e paixão, é preciso isolá-los para não ocnfundi-los. (...) No amor preexiste o "ele". Não se trata de com pará-los, mas de isolá-los. São interessantes as misturas de elementos, de oxigénio, fogo e dinamite e é bom vivê-las e deixarmo-nos levar pelas explosões, mas continuam a ser em tudo distintos, em tudo incomparáveis. Não é uma questão de tempo - um amor pode acabar e uma paixão durar a vida inteira. Nem de intensidade - um amor pode ser loucado e uma paixão tranquila. É uma questão de natureza. Enquanto a paixão, tal como todas as atracções pelo exterior, começa por nós, o amor, que é o único sentimento interior, começa pela outra pessoa, nela reside e nela vive até morrer.
No fundo, o amor tem pouco a ver com a presença, com a convivência, com o tempo e as experiências por que passa.Quantas vezes acontece amar alguém sem suportar estar ao pé dela? Não é só na família. A familiaridade pode até atrapalhar o amor. A vida mete-se à frente da nossa alma e não a deixa respirar. É quando se está sozinho e longe que o amor se deixa ver mais claramente. (...) Mas se a vida serve para alguma coisa, que não seja apenas viver, é para amar. O amor é um dom porque, fazendo-nos sentir pequeninos e dependentes, afasta-nos de nós próprios e do mundo e aproxima-se da nossa alma, no que tem de bom, de razão para viver, da razão de Deus."
Miguel Esteves Cardoso, in Explicações de Português

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